terça-feira, 14 de março de 2006
As Fantásticas Sardinheiras
Mário de Carvalho é, de entre os escritores contemporâneos portugueses, um dos que mais gosto de ler. Recordo com agrado as leituras de Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde ou Era Bom que Trocassemos umas Ideias sobre o Assunto, só para citar alguns exemplos.
Quero, no entanto, lembrar aqui um pequenino, mas muito saboroso livro de contos que dá pelo nome de Casos do Beco das Sardinheiras, onde num qualquer beco, de um qualquer bairro popular de Lisboa, cujo nome saí das sardinheiras que lhe dão cor, os seus sui-generis habitantes vivem casos dignos de figurarem numa dimensão fantástica, só possível graças à imaginação fervilhante deste autor.
Citando :
«E então aconteceu aquilo da Lua.
Deslocou-se um bocadinho assim como quem se desequilibrou, entrou a descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem que por ali pairava feita parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade que só fez “gulp” e esbugalhou os olhos muito. No sítio da Lua, lá no astro, ficou um vinco esbranquiçado como dobra em papel de seda que logo se apagou e o céu tornou-se bem liso e escorreito. O Beco ficou um tudo nada mais escuro e um gato passou a correr, pardo, da cor dos outros.
Diz o Zé Metade, no fim duma estrofe: “Ina cum caraças!”
Vai o Andrade lá de cima e atira o maior arroto que jamais se ouviu naquele Beco.
Era o Zé Metade a berrar para dentro: “`nha mãe, venha cá, senhora, co Andrade engoliu a Lua!” e o Andrade a olhar para nós, limpando a boca com as costas da mão, um ar azamboado. (...)
No dia seguinte, a Humanidade toda estranhou muito o desaparecimento da Lua e deu-se a grandes especulações. Era com algum orgulho que a população do Beco via passar o Andrade. Sempre gaiteiro, apenas um pouco mais gordo.»
E como aí também é referido, não há memória de que algum dos do beco tenha emigrado de livre vontade, talvez por isso aconteça esse fabuloso encontro entre o autor e as personagens no fim do livro, em que as figuras criadas vão em grupo a casa do autor pedir-lhe que continue a contar as suas histórias.
Ah, só mais uma coisa, é preciso ter sempre presente que "importa sobremaneira não confundir o género humano com o Manuel Germano"!
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