sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

Marca do Século


Na minha senda de melhor compreender e, ao mesmo tempo, admirar a obra-prima de Hergé, deixo aqui mais um pequeno texto sobre Tintin e o que significa para mim.

A leitura dos álbuns da série “As Aventuras de Tintin” contém em si várias “leituras”, várias formas de olhar, vários modos de apreender.
Há o desenho. Há o texto. Há o argumento. Há o pormenor. Há o que está “escondido”.

O DESENHO
Por aqui passa o encantamento inicial. A atracção primeira. O desenho é simples, melhor dizendo, de simples leitura e apreensão. Embora seja altamente elaborado não o demonstra, o resultado surge-nos linear, escorreito, perfeito. É sinónimo de facilidade, Qualquer menino, de 7 ou 77 anos, consegue, facilmente, afeiçoar-se-lhe e a ele aderir rápida e espontaneamente.
Por isso lhe chamaram linha clara, embora esta designação seja mais vasta, pois engloba questões que passam igualmente pelo texto e pelo próprio argumento.

O TEXTO
O texto, ou melhor, os diálogos, expressam apenas o essencial, de forma a tornar o mais legível possível toda a trama que se está desenvolvendo.
Há a preocupação de não fastidiar o leitor e de ocupar o menor espaço possível do quadradinho com balões excessivamente grandes. A grande parte da informação é dada pelo desenho, surgindo muitas vezes o texto como “mero” acompanhante da acção. É mais uma vez a linha clara em toda a sua expressão. Esta aparente simplicidade dos diálogos não lhe retira, obviamente, a qualidade e a medida exacta que, de facto, eles possuem e que juntamente com os desenhos, nos fazem descobrir outra faceta, talvez a mais brilhante, o argumento, a “estória”.

O ARGUMENTO
É aqui que reside, talvez, a grande propensão para o êxito que as Aventuras de Tintin alcançaram.
O argumento é, em quase todos os álbuns, de uma perfeição enorme e de uma clareza surpreendente.
Com o mais variado tipo de motivos, a história tem sempre um (ou mais) denominador comum, a justiça, a amizade, a solidariedade. Tintin é como um Robin dos Bosques moderno e urbano, que não rouba ninguém, mas que ajuda todos aqueles que necessitam de ajuda. Acompanhando a cronologia das Aventuras, acompanharemos toda uma evolução da personalidade de Tintin e dos seus companheiros e quando chegamos ao último álbum verificamos ser esta uma obra única, obra de uma vida.
A história é quase sempre brilhante, radicando o seu êxito, tal como no desenho e no texto, na linha clara, na clareza que não a diminui, pelo contrário, torna de fácil leitura problemas e questões muito sérias, ao lado de simples e verdadeiras aventuras. Sensações e sentimentos verdadeiramente humanos passam por aqui, momentos de arrebatamento total ao lado de momentos de carinho, de calma, sendo o que mais resulta, cremos, o sentido de amizade, a grande e imensa amizade que transborda de quase todos os livros. Será aí que está o segredo, é por isso que gostamos tanto destes livros.

O PORMENOR
Já lemos este livro mais de vinte vezes e é só à vigésima primeira que damos conta que na página vinte e um há, no canto superior esquerdo, um quadradinho que nos mostra que foi aí que o Capitão Haddock colocou o lenço na cabeça, nunca até aí nos tínhamos preocupado em reparar nesse pormenor, achamos que ele não tinha importância no desenrolar da história. Mas, se de facto, os quadradinhos estão completos, é porque tudo o que lá está inscrito tem a sua importância na acção.
É isto que dá uma grande, grande qualidade às Aventuras, cada quadradinho tem um manancial incrível de informações, não basta apenas olhar para as figuras principais, ou ler o balão, temos de olhar, atentamente, para todo o quadradinho, ver todos os pequenos (e os maiores) pormenores e assim apreender, em toda a sua dimensão, a mensagem que nos é transmitida pelo autor.
Mas também podemos falar de outro nível de pormenores, que passam por vezes despercebidos, mas que revelam toda a minúcia desta obra. Vejam-se, por exemplo, o desenho completo do foguete que levou Tintin à Lua, ou as fardas dos guardas do Castelo Kropov em Klow, ou os navios Sirius e Aurora, ou o jacto do milionário Carreidas, ou os monumentos de Nova Deli, ou a perspicácia da mais recente edição da Ilha Negra, vejam-se os esgares, os gestos, as feições do Capitão Haddock.
Pegue-se em qualquer álbum e analise-se quadradinho por quadradinho, a descoberta será, certamente, incrível, é uma nova forma de (re)descobrir os álbuns, já dezenas de vezes folheados e lidos, de certeza que irá surgir uma nova leitura que ainda não era conhecida, será um novo prazer.

O QUE ESTÁ ESCONDIDO
Cada um de nós poderá, por aqui, tentar fazer uma leitura específica e pessoal de qualquer livro da série. Ou melhor, poderá, se assim quiser, aprofundar o prazer de ler Tintin, analisar esta obra de um ponto de vista que ultrapassa a mera leitura linear dos livros. Será necessário, cremos, ter um conhecimento mínimo da biografia do seu autor, do tempo e das condições em que as histórias foram escritas, não podemos esquecer que todas estas Aventuras foram publicadas primeiramente não em livro (álbum), mas sim em periódicos, primeiro no Petit Vingtième Siècle, depois no Le Soir e por fim no Journal Tintin. Primeiro em página inteira, depois apenas em tira diária (passando algum tempo depois a semanal) e finalmente em dupla página.
As Aventuras atravessaram quase todo o século XX, passando assim por várias situações que aconteceram na Europa, desde a recessão até à II Guerra Mundial. As Aventuras podem ter, e merecer ter, várias leituras, necessariamente diferentes, a leitura daquela pessoa que lê o livro pelo livro, até aquela em que é procurado nas “entrelinhas” todas as leituras “escondidas”.
Desde a morte do autor, em 1983, inúmeros foram os livros que tentaram entender e explicar a obra de Hergé. Desde teses universitárias, a breves artigos de jornal. De tudo já foi feito, cada um com uma leitura diferente, mas que vêm todas elas enriquecer as várias formas de entender as Aventuras, oferecendo a todos aqueles que gostam da série novas possibilidades de sentirem o prazer de Tintin estar a ser reinventado, ou melhor, a ser relido aos mais variados níveis, fazendo com que esta obra se venha a tornar, efectiva e inevitavelmente, imortal.
Como foi utilizado na publicidade duma conhecida marca francesa de automóveis há poucos anos, Tintin é, sem dúvida, uma das MARCAS DO SÉCULO.

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