quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Apenas um livro


Eis-me aqui chegado. Por caminhos que nunca imaginei. A locais que nunca pensei possíveis. Até me sentir encurralado onde hoje estou.
Quando olho para trás, nem eu, nem quem me criou, sonhámos que poderíamos tomar tais formas, percorrer estradas como estas, cair em tais enganos.
Já sou muito velho, vi muitas coisas, passei por muitas mãos.
Com esta forma e com outras. Com estas letras e com muitas outras.
Tive muitos irmãos. Uns mais bonitos, outros nem tanto.
Vivi muitas casas, deitei-me em muitas camas.
Passei por olhos que nunca me compreenderam e por muitos outros que me deram momentos de infinita felicidade. Tal como aquela que eu também ofereci.
Fui alto e baixo. De cores brilhantes e escuro como breu também. Servi para deleites e para coisas que nem me atrevo a confessar.
Fui queimado e idolatrado. Estive em salas silenciosas e naquelas em que a alegria e o riso comandavam.
Fizeram discursos emotivos sobre mim. E de outras vezes ignoraram-me.
Mas nunca passei despercebido, mesmo que muitos tivessem passado por mim sem me entenderem.
Houve quem me guardasse como um tesouro. Precioso.
Houve quem me usasse como causa menor.
Tudo o que quis foi agradar. Foi prazentear. Fazer sorrir e também chorar.
Emocionar.
Consegui-o. Sei que o consegui muitas vezes.
Vivi muitos anos. Muitos papéis conheci. Muitas capas me cobriram. Muitos desenhos me deram vida. Em muitas salas me escondi. Em muitas outras me descobri.
Hoje nem por isso.
Hoje vivo numa redoma. Quase nem vivo.
Sinto-me preso, estou preso numa gaiola de vidro. Sem vida própria. Numa espécie de limbo em que me transportam para todo o lado, mas sem poder ficar.
Hoje não existo, embora persista. Persisto numa vontade imensa de me tornar vivo outra vez. De poder voltar a viver em cada um que me lê. Que me lê a sério. Folheando-me. Anotando-me. Vendo-me. Mexendo-me.
Nunca escondendo-me dentro dum espelho em que não existo, em que apenas estou numa realidade virtual, sem alma, sem corpo.
Não foi para isso que me criaram. Nunca para estar num espaço de vidro, mas para estar presente, para que me vejam e sintam, para que as palavras que tenho em mim sejam permanentes, reais, palpáveis e não apenas símbolos esquecidos num mecanismo que se liga e desliga, como um mero interruptor.
Eu sei-me vida, sei-me significado, com seiva e sangue, com alma e espírito, com corpo e forma.
Eu estou aqui, como estive desde sempre, como estarei para sempre.
Eu sou um livro. Um livro a sério. Com capa, folhas, letras, palavras e significados.
Nunca serei apenas um reflexo embutido num espelho.

2 comentários:

Apple disse...

Para mim o Livro será sempre em papel...não há nada que se compare ao folhear das páginas, ao sentir o sulco da tinta ou ao cheiro quando o abrimos. Um Livro é para se sentir,para secarregar, nas mãos e no coração, é para dobrar os cantinhos das páginas que mais nos tocam e para reler as dedicatórias manuscritas de quem o ofereceu.Um Livro é sempre muito mais do que a(s) história(s) que conta.

Pedro Santos disse...

Um texto brilhante.