sexta-feira, 1 de julho de 2011

Histórias com Música (49)

Já tinha perdido a conta às viagens que fizera, quando se viu pela primeira vez.
Não era dado a emoções, a compreender e explicar sentimentos, a descobrir novas sensações, a embarcar em aventuras pelo simples prazer da descoberta.
Era pragmático, prático, objectivo e concludente. Por isso fora escolhido para aquela tarefa.
Tinha sido a melhor escolha, disseram-lhe. E todos os dias ele tentava comprovar isso mesmo. Cumpria as suas obrigações sem a mínima falha, sem a mais pequena surpresa, tal qual um relógio suíço, daqueles que os seus antepassados tanto gostavam de usar e gabar.
Os seus dias poderiam parecer monótonos para quem usa a adrenalina como modo de vida. Embora aquilo que fizesse fosse das coisas mais arriscadas que a mente humana poderia sonhar.
Já vira muitas realidades diferentes, daquelas com que, quase, mais ninguém se atreveria a imaginar. Vivera situações impensáveis para o comum dos mortais. Conhecera seres, ou possibilidades de seres, que nem a imaginação mais delirante poderia conceber.
Mas nada disso alterava o seu estado de espírito, a sua maneira, objectiva e funcional, de ver o mundo. Lidava com tais situações como um antigo empregado de escritório lidaria com folhas de papel, agrafos e mata borrões.
Analisava a situação com a qual era confrontado, verificava os prós e os contras, delineava um plano e actuava em conformidade. Nunca nada lhe tinha corrido mal. Tinha sempre encontrado a solução, mais rápida ou mais demorada, consoante os casos, mas nunca falhara. Porque era pragmático, prático, objectivo e concludente.
No dia em que se viu pela primeira vez hesitou, ficou confuso, não conseguiu analisar, confrontar e actuar conforme.
Parou, olhou-se a si próprio, ou o reflexo que se encontrava à sua frente e não soube o que fazer.
Apesar de tudo, concluiu rapidamente que não era apenas uma imagem reflectida por alguma espécie de espelho invisível. Não tinha dúvidas disso. Como também não tinha dúvidas que era ele mesmo que o olhava nos olhos, que, naquele momento deixavam transparecer um mundo de dúvidas e questões que não sabia resolver.
Notou, claramente, que no seu outro eu, também transpareciam sinais de dúvida, de incerteza, de interrogações que, provavelmente, também nunca o tinham afectado.
Hesitante estendeu o braço e abriu a mão. O outro fez o mesmo. Percebeu que havia uma força estranha, mas intensa, que os atraía irremediavelmente.
Viu que o mesmo se passava com o seu outro eu.
Como era hábito quando se encontrava nervoso, o que era raríssimo acontecer, levou a mão direita ao lóbulo da sua orelha esquerda e afagou-o timidamente.
Como num espelho avariado, viu que o outro fazia exactamente a mesma coisa, mas com a mão e a orelha contrárias.
Resolveu falar-lhe, perguntar-lhe, dizer-lhe…
Quando o outro também falou não percebeu, dir-se-ia que os sons eram semelhantes, a entoação também, mas que as palavras estavam ao contrário.
Aproximaram então, porque se tornara doloroso evitar a atracção.
Assim que se tocaram perceberam o que estava a acontecer.
E deixaram-se ir…

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