segunda-feira, 17 de março de 2014

discos de vinil


Fechou a porta do quarto e certificou-se que ninguém a poderia abrir. Levantou a tampa do gira-discos e limpou, com mil cuidados, a agulha retirando todo o pó e sujidade. O som tinha que ser límpido.

Depois olhou para as prateleiras, para todas as finas lombadas dos LP’s e começou a retirar um por um e a dispô-los no chão do quarto. Era ali que estava a sua salvação. Sim, ela sabia que tinha de ser salva e embora não conseguisse dizer de quê, sabia que, fora daquele quarto, alguém, alguma coisa, queria a sua perdição.

Lentamente acercou-se da janela e olhou para fora, para aquela rua cinzenta e escura, para as pessoas que passavam apressadas lá em baixo, para os carros que não paravam de urrar e de correr, como se o mundo e a sua própria salvação dependessem disso. A sua não, a sua estava ali naqueles círculos pretos, nas estrias que os sulcavam, nas capas coloridas que os envolviam, nos sons que deles saiam e que lhe davam oportunidade de viajar tanto, por tantos sítios diferentes e mágicos e, sobretudo, por dentro de si própria.

Acariciou os discos, olhando cada um com um prazer sempre renovado, é sempre a primeira vez.

Pegou n um em particular e retirou o vinil de dentro da capa, limpou-o cuidadosamente e colocou-o no prato.

Ligou a aparelhagem que estava sintonizada no modo rádio e ouviu uma voz solene que debitava uma notícia:

- Exactamente há 15 minutos John Lennon foi baleado à porta do Edifício Dakota, junto ao Central Park em Nova Iorque. Crê-se que não terá sobrevivido aos disparos. Esperamos, a todo o momento, ter mais pormenores sobre este tão trágico acontecimento…

Não admirava particularmente John Lennon, sobretudo desde que os Beatles se tinham separado, e nunca simpatizara, antes pelo contrário, com a japonesa. Como tantos outros, tinha a certeza que tinha sido ela a causadora da separação, mas, por outro lado, talvez tivesse sido melhor assim, os Beatles tinham cristalizado e a sua música afinal, estava connosco para ser completa e definitivamente desfrutada.

Desligou o rádio e colocou o braço do gira-discos sobre a primeira estria da canção que tinha escolhido, I read the news today, oh boy…

Do nada surgiu-lhe a história que a Ana lhe tinha contado na noite anterior. Sonhara que iria ser motorista de táxi. Pensou em táxis amarelos, em Nova Iorque, em edifícios altos, no Central Park, em John Lennon. Pensou em táxis pretos, com o volante à direita, de aspecto antigo, distinto, em tradição e modernidade ao mesmo tempo, em Londres e em Picadilly Circus. Pensou também em táxis pretos e verdes, como aqueles que passavam debaixo da sua janela, naquela Lisboa velhinha que tinha tanta dificuldade em ser nova, mas que ficava tão bem assim. Viu-se onde estava agora, no seu quarto, com os seus discos, à espera que a solução chegasse a qualquer momento.

Voltou então a pegar no braço do gira-discos e pousou-o sobre outra canção, a segunda do lado A, What would you think if I sang out of tune?

Lado A e lado B, os dois lados complementado-se, como na vida, tornando tudo tão mais certo, tornando a sua vida tão mais real, porque a sua realidade, no fundo, passava-se ali, entre quatro paredes forradas com as imagens que lhe coloriam os dias, pautada com sons e palavras que a faziam viajar, viajar como nunca teria sido possível de outras maneiras, que ela também desejava, uma espécie de viagem interior, viagem em si mesma, que lhe ia despertando memórias e criando outras novas, a cada nova hora, em cada novo dia em que, nunca saindo do seu quarto, ia descobrindo novos caminhos, novos rumos, novas formas de redenção.

Novos voos afinal porque, como tinha lido uma vez numa parede duma rua escura de Lisboa, deves pôr o teu orgulho e a tua lucidez debaixo dos pés para poderes voar e isso quase se tornara no seu lema de vida.

Punha o orgulho e a lucidez debaixo dos pés, punha a alegria e a tristeza debaixo dos pés, punha a vontade e a energia debaixo dos pés e punha uma fé inquebrantável nas músicas de que tanto gostava, como naquela que sulcava agora as estrias do vinil, a terceira do lado A, Picture yourself in boat on a river…

E voava, oh se voava, nunca até aí as suas asas foram tão fortes, enquanto fazia os seus voos mirabolantes pelo lado A e pelo lado B, por todos os lados As e Bês que os seus vinis lhe ofereciam.

Com eles ia ganhando sensações novas, emocionais e até físicas, já que, tantas vezes, seria capaz de jurar que via o seu corpo mudar à medida que se deixava inundar pela música.

Era uma espécie de metamorfose, uma metamorfose kafkiana, só que o horror era substituído pela beleza, o insecto sujo e feio tornava-se em algo belo e límpido e ela deixava-se mudar, sair do casulo e esquecer tudo o resto. Criava as memórias que a acompanhariam por todos os dias da sua vida, os passados e aqueles que ainda estavam por estrear. Mesmo que, como lhe parecia agora inevitável, tivesse que abandonar o seu quarto, mesmo que os lados A e B desaparecessem, mesmo que, um dia, os seus vinis mais não fossem que uma lembrança.

Enquanto a brisa lhe afagasse os cabelos e a música continuasse a soar no seu corpo, ela saberia sempre que nada se tinha perdido e que toda a distância seria sempre alcançável, porque a vida é simples quando se ousa ser feliz.

Por isso foi com um sorriso franco e aberto que, antes de pegar na sua mochila e abandonar o seu quarto, colocou o braço na sexta música do lado A, Wednesday morning at five o'clock, as the day begins. Silently closing her bedroom door…

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