quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Pedaço de vida

Relembrei-me então do que a minha mãe me disse pouco tempo antes de morrer.
- Queres conhecê-lo não é? Queres falar com ele, ver o seu rosto, ouvir a sua voz?
Queria, sempre quisera, mesmo que nunca lho tenha confessado ela apercebera-se disso, facilmente.
Conhece-me como ninguém. Nem preciso de lhe falar.
Abracei-a, senti que me fugia e não que conseguia mantê-la comigo. Ela sorria-me, docemente, como sempre fizera. Mas ela sabia que eu nunca seria completo se não o conhecesse. Foi por isso que me estendeu aquele post-it com um conjunto de algarismos que eu nunca tinha visto e me disse para ir a sua casa e confrontar aquele número com o que estava na agenda escondida na cómoda do seu quarto, desde o dia em que nasci. Uma agenda vazia, quase vazia, com uma única informação.
Descansei-a, sabia que a sua memória já conhecera melhores dias, maldita doença.
Quando a voltei a ver não me reconheceu, pediu-me um cigarro, ela que nunca fumou. Daqueles fortes, que queimam por dentro, que não deixam dúvidas.
Depois de ela ter morrido comecei a fumar Ducados. Sei que nunca mais deixarei de fumar Ducados. Por ela e por mim também.
Hoje consegui, finalmente, vir a sua casa. Trago comigo um maço de cigarros e o post-it. Falta-me só a agenda e um pouco mais de coragem.

Mas, na verdade, não queria conhecê-lo, queria sim esquecê-lo. Tirar aquela ideia vaga da minha cabeça, afastar a neblina que, vezes demais, teima em tapar-me os caminhos por onde desejo seguir.
Nunca lhe disse isto a ela, porque sabia que se admitisse a vontade de o conhecer, lhe estaria a agradar, a dar-lhe mais um motivo para acreditar de que nada tinha feito de errado, queria oferecer-lhe a dádiva de que tudo o que fizera tinha valido a pena.
Não queria conhecê-lo, nunca quis. Hoje vim aqui para destruir aquilo que ainda me prende a esta nostalgia maldita que não é minha.
Rasgo o post-it e arranco a folha da agenda quase vazia. Destruo-os, desfaço-me deles e deste pedaço de vida que me incomoda.
Depois acendo um ducado e recordo-me do quanto ela era bonita.

1 comentário:

Apple disse...

Magnífico pedaço de prosa.