terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O meu avô tinha uma garrafa (II)

(...)
Ao contrário do que era hábito na época e nesses locais, o meu avô estudou e quando casou com a minha avó já era sargento da guarda.
Saíram da aldeia e andaram pelo país, de posto em posto, até chegarem aqui. Por aqui ficaram.
A minha avó tinha muitos irmãos.
Era a mais nova de oito.
Os seus irmãos mais velhos envolveram-se em lutas, revoluções e golpes, naquela época em que estes eram férteis. Quando o país deixou de ter reis e passou a ter muitos presidentes.
De um dos irmãos teve um sobrinho que lhes recuperou o sentido da mudança e da revolta. Pelo meio do século foi preso e por lá ficou muito tempo. Até que morreu sem de lá sair.
O meu avô ia visitá-lo e por também pertencer a uma força da ordem, revoltou-se com o que via. Deixou de pertencer.
E depois acho que ficou mais calado.
Às vezes chamava-me rapazinho e eu não gostava nada do epíteto. Mais tarde percebi que era a sua maneira de ser carinhoso.
Nunca lhe vi um cabelo branco. Nunca lhe ouvi um queixume. Quase nunca lhe apercebi uma doença.
No verão, quando íamos para a praia, ele nunca ia.
Durante aquele mês visitava-nos um dia e ficava na amurada a contemplar o mar, mas nunca punha o pé na areia. Não dava jeito ir para a praia de fato e gravata.
Esse dia, em que nos visitava, era uma festa para mim. Apesar de pouco falar e de pouco sorrir, ele dava-me a mão e dizia, vamos lá rapazinho.
E íamos, entravamos na livraria e eu podia escolher um livro, o que quisesse.
Foi aí, quando ainda mal sabia ler, que escolhi a minha primeira banda desenhada, aquela que ainda hoje me acompanha.
(...)

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