sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A sala secreta

Entrou ao de leve na sala. Há já tantos anos que lá não ia, tanto tempo passado desde que a porta se havia fechado. Lembrava-se de correr por ali, subir sofás, escalar cortinados, espreitar debaixo das mesas e das cadeiras, descobrir inúmeros segredos que nunca contara a ninguém. Fora ali que encontrara um mapa da Sardenha, e mesmo não sabendo o que era a Sardenha, estudou o mapa, leu-lhe os mais ínfimos pormenores, os mais recônditos segredos. Ficou a conhecer a Sardenha como ninguém. Ali passou dos mais belos momentos da sua vida, através do mapa que alguém tinha deixado debaixo da mesa. Foi também ali que descobriu aquele cachimbo que ainda lá se encontra, bonito, de madeira negra, ainda tem o cheiro adocicado que o tabaco lhe deu. Lembrou-se de como o colocava na boca e aspirava aquele fumo imaginado, aquele sabor inebriante, aquele cheiro único. E de como o enjoava o odor que exalava da pequena caixa de rapé que se encontrava logo ao lado do cachimbo.
A sala mantinha-se na obscuridade, como sempre a conhecera. Era isso que o fascinava, aquela sala isolada do resto da casa, cheia de memórias, de histórias que mais ninguém queria, ou sabia, conhecer. Ainda ali se encontrava a mesma vela que queimou da última vez que ali tinha estado, gasta, derretida, cheia de histórias que ele próprio tinha criado e que por ali tinham ficado.
Virou-se lentamente e olhou para a janela que se mantinha tapada pelo mesmo cortinado pesado, ainda lá estavam presos os dois pedaços de fósforo que ele próprio havia recortado há tantos anos, formavam duas letras, as iniciais do seu nome e continuavam ali, nunca ninguém entrava naquela sala.
Abriu então a gaveta da secretária, era ali que deixava os seus escritos, aquilo que queria criar para depois oferecer, enviar a amigos imaginários, postais cheios de pequenas histórias que mais não eram que breves devaneios de quem ainda não tem idade para os contar em voz alta. Viu que ainda lá estavam os selos, imensos selos, de 5 tostões, que já não existem, nem os selos, nem os tostões. Será que ainda alguém se lembra dos tostões? Mas dos postais nem sombra, será que alguém os tirou dali, será que, afinal, ele nunca os escreveu. Reparou então que debaixo da secretária, mesmo junto ao seu pé direito estava um pedaço de cartão colorido, um pedaço de uma fotografia de um sítio soalheiro, talvez uma imagem da Sardenha.
Foi então que ouviu um ruído atrás de si, um leve roçagar, quase indistinto. Não teve vontade de se voltar, de ver quem era. Quem poderia ser? Apenas ele conhecia aquela sala, tinha a certeza que mais ninguém ali entrara durante todos aqueles anos, nem sequer sabiam da sua existência.
Calmamente ajeitou o cinturão onde guardava os cartuchos. Apertou melhor a fivela e tirou um cartucho. Carregou a pequena espingarda que trazia consigo.
Virou-se, lentamente, como desejando não ver aquilo que, já sabia, iria encontrar.
Foi já sem surpresa que encarou o espelho e se viu reflectido nele. Na sua mão direita trazia um livro novo, conseguiu ler o título, Histórias da Sala Secreta. Sem hesitar puxou o gatilho. O espelho partiu-se em mil pedaços. Atrás de si a sala ficou na mesma. Rodou então sobre si próprio, fechou a porta à chave, pegou no cachimbo, encheu-o de tabaco adocicado e acendeu-o, de seguida sentou-se no chão e começou a ler o livro.

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