quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O meu avô tinha uma garrafa (I)

O meu avô tinha uma garrafa que dançava.
Eu passava horas sem fim a contemplá-la.
Na verdade não era a garrafa que dançava, era uma pequena boneca, vestida de bailarina que estava presa ao fundo da garrafa, no interior.
Havia um mecanismo mesmo por debaixo da boneca e uma espécie de chave, na parte de baixo da garrafa, onde se dava corda. A seguir a boneca começava a girar, a voltear, a bailar. Acho que também se ouvia uma música. Mas disso já não me lembro. De qualquer forma a boneca ouvia essa música e dançava tão bem.

O meu avô gostava de me ver admirar a garrafa e, volta e meia, dava-lhe corda e eu ali ia ficando, admirando-a.
O meu avô era um homem alto, sempre muito direito, mexia a cabeça mas mal movia o tronco. Andava sempre impecavelmente vestido, se entendermos por impecavelmente um fato e uma gravata e uma camisa sempre muito bem passada.
Imaculado. Nunca lhe vi uma nódoa, um vinco fora do lugar.
Um senhor de fato e gravata, mesmo quando não os usava.
O meu avô falava pouco, pelo menos comigo. Mas passava-me a mão pela cabeça e sorria.
Às vezes saía de casa e ficava o dia inteiro sem aparecer.
Foi à cidade, diziam-me. Ia muitas vezes à cidade. Saía de manhã cedo e só regressava depois do jantar.
Nos fins de tarde dos invernos longos, sentava-se à mesa da cozinha. Uma mesa larga com um tampo de mármore, muito alvo, muito limpo e punha uma pequena tábua de madeira à sua frente. Do lado direito uma faca afiada. Do esquerdo um prato com um chouriço e um outro com um queijo branco, duro, picante, à frente um cesto com pão e um copo com grogue.
Grogue era uma bebida que ele próprio preparava. Sei que tinha aguardente, água com gás e sumo de um limão, mas não sei se tinha mais alguma coisa e também não sei a que sabia, nunca me deixaram experimentar.
O meu avô não nasceu na cidade. Nasceu numa pequena aldeia do interior, na raia espanhola, mesmo no dealbar do século. Só teve um irmão, mais novo, que não me lembro de ter conhecido.
(...)

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