Na verdade nunca se tinha preocupado com o dia seguinte. Vivia a sua vida como se não houvesse amanhã. Havia quem dissesse na corda bamba, ele preferia na ponta da lança.
Desdenhava das rotinas. Virava à esquerda ou à direita consoante lhe desse na gana e o caminho era sempre em frente, mesmo naquelas alturas em que tinha que dar alguns passos atrás.
Quem com ele privava sentia-lhe a respiração ofegante, o coração a bater depressa, mas sabia que era feliz assim.
- Sim, sou feliz assim. Não estou apenas feliz. Costumava dizer a quem o interrogava acerca da sua pressa.
Ele, pelo contrário, nunca se considerou apressado. Aliás, pensava muito em tudo o que fazia, mas pensava a correr, nunca ninguém o viu parado a pensar.
Havia mesmo quem jurasse que ele dormia em pé para não perder tempo. Ele próprio sempre se considerou um ganhador de tempo. Um coleccionador de risos de criança. Sim porque o riso duma criança, achava ele, era o melhor antídoto para uma vida monótona e triste. Cada vez que uma criança se ria, o mundo pulava e avançava. Era exactamente isso que ele procurava, um avanço para lá do que era, aparentemente, possível. Se pudesse ele saltaria para lá do mundo. Sobrevoaria o planeta, tocaria as estrelas. Para ele isso não era um sonho impossível de concretizar.
O azul e branco do infinito era uma meta que sabia alcançável sem necessidade de artifícios livrescos ou poesias industriais.
Era plausível com aquilo que ele tanto desejava. O desejo não era inalcançável. Era uma coisa concreta que, mais ou cedo ou mais tarde, se alcançaria, senão não era desejo mas quimera fútil e vazia. E o seu mundo não admitia vazios, nem sequer os breves segundos em que, por vezes, uma noite sem estrelas, povoada de fantasmas, lhe surgia do nada. Nem isso o assustava. Pelo contrário, divertia-o.
Dava o braço ao fantasma mais próximo e ria-se com ele, dançava danças imaginadas, percorria-o uma imensa vontade de possuir o impossível.
Era esse o seu desejo, o seu querer, o seu destino afinal: a vontade de possuir o impossível.
No dia em que chegou a essa conclusão, foi o dia em que parou pela primeira vez.
Parou para reflectir, embora não soubesse como se fazia. Estranhou a sensação e, pouco a pouco, compreendeu-a e começou a manobrá-la.
Afinal, pensou, estar parado pode trazer algumas vantagens.
Também nessa altura duvidou. Coisa que nunca lhe tinha acontecido.
Vários porquês o assaltaram inesperadamente e, acontecimento inédito, não lhes conseguiu dar resposta imediata.
Um delicioso embalo foi o que sentiu a seguir. Mesmo antes de fechar os olhos e adormecer. Sentiu ainda o corpo a deitar-se docemente sobre a relva onde tinha parado.
A queda no desconhecido e o seu antigo quintal das brincadeiras misturaram-se na sua mente. Não percebeu se era sonho ou realidade. Se tinha sido enganado, ou era apenas a realidade que se enganara. Mas gostou da sensação e gostou de se lembrar.
A emoção levada á última consequência era, afinal, o que lhe estava a acontecer e mesmo julgando estar a dormir, teve a certeza de que, para se viver a sério, não era necessário correr, afinal o mundo não fugia dele, era apenas ele que queria fugir do mundo.
E num estado em que recordou o quarto de onde via as estrelas, mesmo sem a promessa de as alcançar, confundiu emoções e ganhou uma nova certeza, aquela em que gostava de ter dúvidas, porque assim talvez lhe fosse mais fácil chegar onde sempre desejara, a uma vontade irreprimível de possuir o impossível.
Nessa altura fechou os olhos e deixou-se ficar. Sentiu que estava agora mais perto do azul e branco do infinito, num delicioso embalo, repleto de uma vontade irreprimível de possuir o impossível.
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